segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Estudos Literários: Piglia e Poe

Ricardo Piglia, importante romancista argentino da atualidade, ilumina suas “Teses sobre o conto” (in: Formas Breves) expondo argumentos que guiem autor e leitor na construção e revelação da escrita contística. Pois sim, se o bom contista é aquele que conta uma história oferecendo um paradoxo, o bom leitor será o que apreende este caráter duplo. Explico.
Para Piglia um conto sempre abrange duas histórias. Uma é narrada em primeiro plano ao passo que a segunda é armada em segredo, apresenta-se entremeada na história mais visível, “um relato visível esconde um relato secreto” diria. Assim, o conto adquire uma matéria ambígua em que seus elementos atuam com um duplo funcionamento, “o que é supérfluo numa história é básico na outra”, a fim de que em dado momento haja uma fusão de 1 com 2 e o ‘efeito surpresa’ apareça na superfície.
A problemática narrativa muda o foco e a impossibilidade de narrar de Adorno (“Posição do narrador no romance contemporâneo” in: Notas de Literatura I) cede espaço à “como contar uma história enquanto se conta outra?”, ao menos no relativo ao conto. A partir dessa questão, Piglia aponta como a versão moderna e a clássica do conto operam diante deste dilema.
Do lado dos modernos estão Tchekhov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, James Joyce, Hemingway, Kafka e Borges. Para eles o segredo da história 2 é cada vez mais uma alusão. O fim em Joyce não representa uma surpresa. Em Hemingway é como se nada tivesse ocorrido, já que “o mais importante nunca se conta”. Kafka inverte a 1 pela 2 e Borges toma a história 1 como um gênero e a 2 sendo sempre a mesma. Aqui duas histórias são contadas como se fossem uma.
No entanto, Edgard Allan Poe, representante do estilo clássico, cria uma história anunciando outra. Há uma que é visível e outra não. Em Poe tudo é criação racional articulada com a consideração de um efeito: o terror, a melancolia e o medo. O encantamento no qual o leitor se atira é a destreza de um Poe que intente excitar, controlar a alma do leitor. Palavra por palavra a escrita de Poe segue um princípio poético (do efeito, trama e manipulação) que culmina na poética do suspense e da surpresa final. É na invenção dos incidentes, na combinação dos eventos, no texto espelhado ou como diz Haroldo de Campos, “verso e reverso da mesma medalha” (“O texto espelho” in: A Operação do Texto) que os contos de Poe são duplos.
Para comprovar a tese de Piglia, o conto “The fall of the house of Usher” (“A queda da casa de Usher”) foi escolhido.
“A queda da casa de Usher” é narrado em primeira pessoa por um narrador periférico, alguém que mantém relações íntimas com as personagens principais, “um EU testemunha posto à margem da insólita história” (“Teoria da narrativa: posição do narrador” Davi Arrigucci Jr. In: Jornal da Psicanálise volume 31 – 1998 – nº57). Logo de entrada já se revela uma duplicidade, um espelhamento que acompanhará toda trama. A imagem da casa refletida na lagoa (‘tarn’) desperta no narrador uma atmosfera pesada, cor de chumbo que corrobora para duelar com uma “metade real, viva” e outra “metade simbólica, morta”. Mas, vamos nos ater a história 1, isto é, aquela mais aparente, para em seguida revelarmos a história 2.
O tom escolhido por Poe não é outro senão o da melancolia e toda descrição da paisagem soma-se a esse tom, “During the whole day of a dull, dark, and soundless day in the autumn of the year, when the clounds hung oppressively low in the heavens, I had been passing alone, on horseback, through a singularly dreary tract of country; and at length found myself, as the shades of the evening drew on, within view of the melancholy House of Usher (…) I looked upon the scene before me --- upon the mere house, and the simple landscape features of the domain --- upon the bleak walls --- upon the vacant eye-like windows --- upon the few rank sedges --- and upon a few white trunks of decayed trees --- with an utter depression of soul which I can compare to no earthly sensation more properly than to the after-dream of the reveller upon opium --- the bitter lapse into everyday life --- the hideous dropping off of the veil.”. Essa ambientação melancólica, fria, outonal é indício que desperta a tristeza, inclusive é durante o outono que as folhas caem, revertendo-se em metáfora para a queda da casa. Aqui estaria toda a história 1: um amigo de Roderick Usher recebe uma carta para ir visitá-lo no interior. Ao chegar lá, o narrador sente-se melancólico e para distrair-se lê um conto de Sir Launcelot Canning, “Mad Trist”. A leitura de alguns episódios começa a coincidir com uma série de ocorridos estranhos que culminam no reaparecimento da irmã morta de Roderick, lady Madeline, “’Not hear it? Yes, I hear it, and have heard it. Long, long, long, many minutes, many hours, many days, have I heard it --- yet I dared not --- Oh, pity me, miserable wretch that I am! --- I dared not --- I dared not speak! We have put her living in the tomb! Said I not that my senses were acute? I now tell you that I heard her first feeble movements in the hollow coffin. I heard them many, many days ago --- yet I dared not --- I dared not speak! And now to night Ethelred ha! Ha! --- the breaking of the hermit’s door, and the death-cry of the dragon, and the clangour of the shield! --- say, rather, the rending of her coffin, and the grating of the iron hinges of her prison, and her struggles within the coppered archway of the vault! Oh whither shall I fly? Will she not be here anon? Is she not hurrying to upbraid me for my haste? Have I not heard her footsteps on the stair? Do I not distinguish that heavy and horrible beating of her heart? Madman!’ here he sprang furiously to his feet, and shrieked out his syllables, as if in the effort he were giving up his soul --- ‘Madman! I tell you that she now stands without the door!’”, e no fim a queda da casa no espelho do lago, “there was a long tumultuous shouting sound like the voice of a thousand waters --- and the deep and dank tarn at my feet closed sullenly and silently over the fragments of the ‘House of Usher’.”. É óbvio que o narrador não se encontrava dentro da casa, tendo, portanto, sobrevivido ao incidente o que o possibilitou de contar essa história que se encerra.
Tudo isso está dito, é visível. Passemos a história 2, aquela que é secreta, que é tecida meio a trama da primeira.
Como já foi notado, “A queda da casa de Usher” é um conto espelhado e invertido, as oposições “real, vida” e “simbólica, morta” levam a uma leitura daquilo que se passa na mente de Roderick Usher, a iluminação de sua consciência e racionalidade X a escuridão e os desejos secretos de seu subconsciente.
Piglia afirma que “o conto clássico narra em primeiro plano a história 1 e constrói em segredo a história 2. (...) O que é supérfluo numa história é básico na outra.”, assim, é a partir dos sinais expressos em 1 que desvendamos 2.
Bem no centro d’”A queda da casa de Usher” há um poema que se articula com a fenda que desce em ziguezague no meio da parede da casa e que divide duas janelas que assemelham-se à olhos vazios (eye-like windows). A casa está refletida no lago, Roderick e Madeline são gêmeos.
É possível, agora, traçar duas análises sêmicas, uma positiva (o presente, a casa, Roderick e Madeline, a vegetação, tudo que é real, vivo e iluminado) e outra negativa (o passado, a imagem da casa no lago, a fantasmagoria, a opressão, aquilo que é fictício, a morte e as sobras e escuridão).
Roderick Usher é um personagem em desacordo com o mundo, com a vida, “he suffered much from a morbid acuteness of the senses; the most insipid food was alone endurable; he could wear only garments of certain texture; the odours of all flowers were oppressive; his eyes were tortured by even a faint light; and there were but peculiar sounds, and these from stringed instruments, which did not inspire him with horror.”, ele próprio pode configurar enquanto personagem vivo no lado positivo e com sua caracterização e feição fantasmagórica do lado negativo. A propósito, é nesse jogo ambíguo que uma coisa pode ser isso ou aquilo que Poe estrutura a história 2. Positivo e negativo misturam-se, a ficção torna-se realidade, o subconsciente é revelado ou ao menos aludido (a sugestão de uma relação incestuosa entre os irmãos, “a tenderly beloved sister, his sole companion for long years, his last and only relative on earth.”). O passado, as recordações, a culpa afligem Roderick e o levam a enterrar a irmã viva objetivando dar um fim a tudo isso. O presente retornado, na presença da irmã cadavérica, apontando a impossibilidade de enterrar o passado, ocultá-lo, abandoná-lo na escuridão subterrânea da mente. E é com o reaparecimento de Madeline que todo o passado é resgatado no presente e os pecados ocultados só podem ter um fim, “For a moment she remained trembling and reeling to and from upon the threshold, then, with a low moaning cry, fell heavily inward upon the personof her brother, and in her violent and now final death-agonies, bore him to the floor a corpse, and a victim to the terrors he had anticipated.”. As metades juntam-se. Vida e morte, Eros e Tânatus enfim deixam de duelar.



Bibliografia:
Adorno, Theodor W. – “Posição do narrador no romance contemporâneo” in: Notas de literatura I.
Arrigucci Jr., Davi – “Teoria da narrativa: Posição do narrador” in: Jornal da Psicanálise volume 31, 1998 nº 57.
Campos, Haroldo – “O texto-espelho (Poe, engenheiro de avessos)” in: A Operação do Texto.
Piglia, Ricardo – “Teses sobre o conto” in: Formas Breves.
Poe, Edgar Allan – “The fall of the house of Usher”
“The Philosophy of composition”
“Os contos de Hawthorne”
Prado, José Henrique da Silva – “O mal-estar na literatura: uma leitura comparatista” in: Revista Mal-Estar e Subjetividade, março, 2004, volume IV, nº 01. Universidade de Fortaleza.
Rodrigues, Fábio Della Paschoa – “A composição lógica e a lógica de composição de Poe”.

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