sexta-feira, 9 de abril de 2010

A Arnaldo Baptista

Quem é louco
VAN GOGH ou nós?

Mas louco é quem me diz
e não é feliz

O sentido está em ti
A realidade é louca
Se não achares um sentido na loucura
acabarás louco

Eu juro que é melhor
Não ser o normal
Se posso pensar que Deus sou eu

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Como Dois e Dois

Quando você me ouvir cantar
Venha, não creia, eu não corro perigo
Digo, não digo, não ligo, deixo no ar
Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar
Tudo vai mal, tudo
Tudo é igual quando eu canto e sou mudo
Mas eu não minto, não minto
Estou longe e perto
Sinto alegrias, tristezas e brinco

Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco

Quando você me ouvir chorar
Tente, não cante, não conte comigo
Falo, não calo, não falo, deixo sangrar
Algumas lágrimas bastam pra consolar
Tudo vai mal, tudo, tudo, tudo, tudo...
Tudo mudou não me iludo e contudo
A mesma porta sem trinco
O mesmo teto, o mesmo teto
E a mesma lua a furar nosso zinco
Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco

Meu amor, meu amor, meu amor
Tudo em volta está deserto, tudo certo
Tudo certo como dois e dois
Tudo certo como dois e dois
São cinco, são cinco

terça-feira, 6 de abril de 2010

Jacques Lacan

A angústia é a única fonte da
criação

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Um em Dois

As pessoas afirmam serem únicas
S I N G U L A R E S
Já eu
sempre fui duplo

sábado, 3 de abril de 2010

Palavras ao vento

Porque há a obrigação da escrita
então, escrevo
Porque há o direito à loucura
então, me silencio

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Mantra

O mundo está doente
O mundo está doente
O mundo está doente

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I'm sick of being sick

sábado, 27 de março de 2010

Os Famosos e os Duendes da Morte

Depois dalí
não tem mais nada

Naquela cidade cada pessoa sonhava em segredo
O garoto sem nome
conhece a garota sem pernas
A garota sem pernas mostrou a ele o mundo como o conhecia
Ele, que não tinha nome, embarcou
Por um tempo eles olharam para a mesma direção
O que para um era sina
Para o outro era mistério
Eles poderiam andar juntos sobre o mesmo trilho
mas nunca seriam esmagados pelo mesmo trem

- É muito longe de mim
Longe é lugar onde a gente pode viver de verdade

The Famous and The Dead

It's that beyond there
there's nothing else

In that town, each person dreamed in secret
The boy without a name
met the girl without legs
The girl without legs showed him the world as she knew it
He, who had no name, went aboard
For a while, they looked the same way
Fate for one
Mystery for the other
They could walk along the same rail
but would never be smashed by the same train

- It's too far from me
Far is the place where we can live a real life

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Marc Augé e seu Não-Lugar: reflexão homeopática

No balaio de olhares, excessos, instantaneidades, miragens, relações alteres e aceleramento da história, resta-nos o questionamento tal qual proposto por Michel de Certeau, “Como pensar em situar o indivíduo?”.
O não-lugar de Augé é espaço onde corpos móveis deslocam-se de forma impune e flutuante, pessoas iguais em suas indiferenças e solidões cruzam-se em silêncio. Elas são insondáveis, não podem ser explicadas, isto é, a melhor tentativa de se falar ao/sobre os contemporâneos esteja em dizer-lhes o que são mostrando o que não são mais.
Na falta da obrigação em estabelecer laços com o outro, os indivíduos expõem-se em um movimento de retração sobre si próprios. É como na abertura de Ensaio Sobre a Cegueira de Saramago, “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
E nesta cotidiana batalha de improvisações de nossos olhares, a única coisa que se apresenta visível são os sinais daquilo que foi, o deciframento de que estamos à luz do que não somos mais. E a história se acelera.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Estudos Literários: "O Espelho" - Machado de Assis

A análise que será feita privilegia os aspectos composicionais da narração, a saber: posição do narrador, retardamento e progressão, ponto de vista (angulação), caracterização e motivos narrativos, para enfim tentar resolver amigavelmente os mais árduos problemas do conto machadiano. O texto base que norteará este trabalho data da década de 50 e foi escrito por Norman Friedman, trata-se de “O Ponto de Vista na Ficção” (“The point of view in fiction”) traduzido por Fábio Fonseca de Melo.
O conto é transmitido de forma cênica, o enredo não é contando (telling), mas sim, acontece diante das ações, os eventos predominam, são mostrados (showing) diretamente com todos detalhes e sucessões temporais. É assim todo o primeiro parágrafo que apesar da imprecisão no número de personagens dentro da cena e da não definição de qual noite os fatos se desenrolam, não é possível pensar em um sumário narrativo. “Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.”. Veja a riqueza de detalhes na descrição da casa que fica entre a cidade e o céu, aludindo a famosa passagem shakesperiana “há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”. Não é forçado pensar nesta alusão a peça Hamlet já que, paradoxalmente, os quatro ou cinco cavalheiros debatem amigavelmente os mais árduos problemas do universo. Duas páginas a seguir, e uma outra citação a Shakespeare, desta vez explícita, aparece como exemplo para a teoria de que cada ser humano traz consigo duas almas.
O segundo parágrafo do conto se preocupa em desfazer a imprecisão. Afirma que são cinco os personagens, ou melhor “Rigorosamente eram quatro os que falavam: mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um outro resmungo de aprovação.”. Começa, então, a caracterizar esse quinto elemento, “Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão era a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial;”. Fica patente de que esse personagem tem entre quarenta e cinqüenta anos, é capitalista, astuto, inteligente e o mais importante, não discutia nunca. Esses dados da caracterização ganham força ao sabermos o nome do personagem, “Jacobina (assim se chamava ele)”. Jacobina remete aos Jacobinos da Revolução Francesa de 1789, grupo de homens respeitáveis da classe média de ideologia liberal burguesa e tidos como radicais que não admitiam o debate. Machado ao nomear Jacobina dá-lhe também um caráter funcional.
O silêncio de Jacobina é trocado pelo silêncio dos outros quatros. Esses escutam enquanto aquele passa a contar um caso de sua vida, dizer que não há uma só alma, há duas.
Durante a explanação surge a metáfora da laranja, que se transforma em um primeiro motivo narrativo, “Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência;”.
Então ele dá seqüência ao que se sucedeu quando tinha vinte e cinco anos (será a metade dos seus cinqüenta?). Aqui aparece o segundo motivo narrativo, o olho, o olhar, “todos os olhos estão no Jacobina, que concerta a ponta do charuto, recolhendo as memórias.”. Também percebemos a troca da posição do narrador, até aqui a história era relatada na terceira pessoa por um narrador onisciente neutro, isto é, “os estados mentais e os cenários que os evocam são narrados indiretamente, como se já tivessem ocorrido (...) A característica predominante da onisciência, todavia, é que o autor está sempre pronto a intervir entre o leitor e a estória, e mesmo quando ele estabelece uma cena, ele a escreverá como a vê, não como vêem seus personagens.” (“O ponto de vista na ficção” – Norman Friedman). A partir daqui vemos a história pelos olhos de Jacobina, nosso narrador-protagonista. Ficamos presos a sua experiência vivida, estamos limitados a seus pensamentos, sentimentos e percepções. Nossos olhos, assim como os dos quatro companheiros estão voltados à figura de Jacobina. Na verdade, talvez sempre tiveram, uma vez que “quem entrevê o que se passa por trás da máscara da terceira pessoa já foi primeira pessoa, já se olhou no espelho” (“A máscara e a fenda” – Alfredo Bosi).
O que aconteceu com Jacobina retoma a velha alegoria da sombra perdida, como anota Antonio Candido em “Esquema de Machado de Assis”, “um moço, nomeado Alferes da Guarda Nacional, vai passar uns tempos na fazenda de sua tia. Esta, orgulhosa com o fato, cria uma atmosfera de extrema valorização do posto, chamando-o e fazendo que os escravos o chamem a cada instante ‘Senhor Alferes’. De tal modo que este traço social acaba sendo uma ‘segunda alma’, indispensável para a integridade psicológica do personagem. Dali a dias a tia precisa viajar com urgência e deixa a fazenda a seu cargo. Os escravos aproveitam para fugir, ele fica na solidão mais completa e chega às bordas da dissolução espiritual, desde que não tinha mais o coro laudatório que evocava o seu posto a cada instante. A tal ponto, que olhando certo dia no espelho vê que a sua imagem aparece dissolvida, borrada e irreconhecível. Ocorre-lhe a idéia de vestir a farda e passar algum tempo todos os dias diante do espelho, o que o tranqüiliza e lhe restabelece o equilíbrio, pois a sua figura se projeta de novo claramente, devidamente revestida pelo símbolo social do uniforme.”. Esse resumo de Antonio Candido deixa nítido de que não só os quatro personagens e os leitores são vítimas do olhar como também o próprio Jacobina é prisioneiro de seu olhar e do olhar dos outros.
A laranja relaciona-se com outros motivos: a manhã, o sol e a claridade do dia, pois é apenas durante o sono que Jacobina sentia-se aliviado, o sono eliminava a alma exterior deixando a alma interior livre para sua atuação. Assim, “quando acordava, dia claro (a laranja cortada ao meio lembra o desenho do sol), esvaía-se com o sono, a consciência do meu ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra”.
No entanto, o quase monólogo de Jacobino é interrompido poucas vezes, quando esse trata de se dirigir aos companheiros com questões do típico fática, que mais do que verificar a atenção dos ouvintes, funcionam no conto como um processo de retardamento, uma certa quebra narrativa que coloca em suspense, temporariamente, a progressão do enredo, “Custa-lhes acreditar, não?
- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.
- Vá entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos; os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos.”.
Moral da história, em “O Espelho” é o público quem tem consistência, é o Senhor Alferes, Jacobina ou ainda antes Joãozinho tem a alma humana dúbia, deletéria, nas palavras de Alfredo Bosi, “é o corpo opaco do medo, da vaidade, do ciúme, da inveja; numa palavra, o enigma do desejo que recusa mostrar-se nu ao olhar do outro”.
Afinal, “quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escada”.



Bibliografia:
Arrigucci Jr., Davi – “Teoria da narrativa: Posições do narrador” in: Jornal da Psicanálise volume 31, 1998, número 57.
Assis, Machado – “O espelho” in: Machado de Assis Contos / Uma Antologia.
Bosi, Alfredo – “A máscara e a fenda” in: Machado de Assis: antologia e estudos.
Candido, Antonio – “Esquema de Machado de Assis” in: Vários Escritos.
Friedman, Norman – “O ponto de vista na ficção” in: Revista da USP número 53, março 2002.

Estudos Literários: Piglia e Poe

Ricardo Piglia, importante romancista argentino da atualidade, ilumina suas “Teses sobre o conto” (in: Formas Breves) expondo argumentos que guiem autor e leitor na construção e revelação da escrita contística. Pois sim, se o bom contista é aquele que conta uma história oferecendo um paradoxo, o bom leitor será o que apreende este caráter duplo. Explico.
Para Piglia um conto sempre abrange duas histórias. Uma é narrada em primeiro plano ao passo que a segunda é armada em segredo, apresenta-se entremeada na história mais visível, “um relato visível esconde um relato secreto” diria. Assim, o conto adquire uma matéria ambígua em que seus elementos atuam com um duplo funcionamento, “o que é supérfluo numa história é básico na outra”, a fim de que em dado momento haja uma fusão de 1 com 2 e o ‘efeito surpresa’ apareça na superfície.
A problemática narrativa muda o foco e a impossibilidade de narrar de Adorno (“Posição do narrador no romance contemporâneo” in: Notas de Literatura I) cede espaço à “como contar uma história enquanto se conta outra?”, ao menos no relativo ao conto. A partir dessa questão, Piglia aponta como a versão moderna e a clássica do conto operam diante deste dilema.
Do lado dos modernos estão Tchekhov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, James Joyce, Hemingway, Kafka e Borges. Para eles o segredo da história 2 é cada vez mais uma alusão. O fim em Joyce não representa uma surpresa. Em Hemingway é como se nada tivesse ocorrido, já que “o mais importante nunca se conta”. Kafka inverte a 1 pela 2 e Borges toma a história 1 como um gênero e a 2 sendo sempre a mesma. Aqui duas histórias são contadas como se fossem uma.
No entanto, Edgard Allan Poe, representante do estilo clássico, cria uma história anunciando outra. Há uma que é visível e outra não. Em Poe tudo é criação racional articulada com a consideração de um efeito: o terror, a melancolia e o medo. O encantamento no qual o leitor se atira é a destreza de um Poe que intente excitar, controlar a alma do leitor. Palavra por palavra a escrita de Poe segue um princípio poético (do efeito, trama e manipulação) que culmina na poética do suspense e da surpresa final. É na invenção dos incidentes, na combinação dos eventos, no texto espelhado ou como diz Haroldo de Campos, “verso e reverso da mesma medalha” (“O texto espelho” in: A Operação do Texto) que os contos de Poe são duplos.
Para comprovar a tese de Piglia, o conto “The fall of the house of Usher” (“A queda da casa de Usher”) foi escolhido.
“A queda da casa de Usher” é narrado em primeira pessoa por um narrador periférico, alguém que mantém relações íntimas com as personagens principais, “um EU testemunha posto à margem da insólita história” (“Teoria da narrativa: posição do narrador” Davi Arrigucci Jr. In: Jornal da Psicanálise volume 31 – 1998 – nº57). Logo de entrada já se revela uma duplicidade, um espelhamento que acompanhará toda trama. A imagem da casa refletida na lagoa (‘tarn’) desperta no narrador uma atmosfera pesada, cor de chumbo que corrobora para duelar com uma “metade real, viva” e outra “metade simbólica, morta”. Mas, vamos nos ater a história 1, isto é, aquela mais aparente, para em seguida revelarmos a história 2.
O tom escolhido por Poe não é outro senão o da melancolia e toda descrição da paisagem soma-se a esse tom, “During the whole day of a dull, dark, and soundless day in the autumn of the year, when the clounds hung oppressively low in the heavens, I had been passing alone, on horseback, through a singularly dreary tract of country; and at length found myself, as the shades of the evening drew on, within view of the melancholy House of Usher (…) I looked upon the scene before me --- upon the mere house, and the simple landscape features of the domain --- upon the bleak walls --- upon the vacant eye-like windows --- upon the few rank sedges --- and upon a few white trunks of decayed trees --- with an utter depression of soul which I can compare to no earthly sensation more properly than to the after-dream of the reveller upon opium --- the bitter lapse into everyday life --- the hideous dropping off of the veil.”. Essa ambientação melancólica, fria, outonal é indício que desperta a tristeza, inclusive é durante o outono que as folhas caem, revertendo-se em metáfora para a queda da casa. Aqui estaria toda a história 1: um amigo de Roderick Usher recebe uma carta para ir visitá-lo no interior. Ao chegar lá, o narrador sente-se melancólico e para distrair-se lê um conto de Sir Launcelot Canning, “Mad Trist”. A leitura de alguns episódios começa a coincidir com uma série de ocorridos estranhos que culminam no reaparecimento da irmã morta de Roderick, lady Madeline, “’Not hear it? Yes, I hear it, and have heard it. Long, long, long, many minutes, many hours, many days, have I heard it --- yet I dared not --- Oh, pity me, miserable wretch that I am! --- I dared not --- I dared not speak! We have put her living in the tomb! Said I not that my senses were acute? I now tell you that I heard her first feeble movements in the hollow coffin. I heard them many, many days ago --- yet I dared not --- I dared not speak! And now to night Ethelred ha! Ha! --- the breaking of the hermit’s door, and the death-cry of the dragon, and the clangour of the shield! --- say, rather, the rending of her coffin, and the grating of the iron hinges of her prison, and her struggles within the coppered archway of the vault! Oh whither shall I fly? Will she not be here anon? Is she not hurrying to upbraid me for my haste? Have I not heard her footsteps on the stair? Do I not distinguish that heavy and horrible beating of her heart? Madman!’ here he sprang furiously to his feet, and shrieked out his syllables, as if in the effort he were giving up his soul --- ‘Madman! I tell you that she now stands without the door!’”, e no fim a queda da casa no espelho do lago, “there was a long tumultuous shouting sound like the voice of a thousand waters --- and the deep and dank tarn at my feet closed sullenly and silently over the fragments of the ‘House of Usher’.”. É óbvio que o narrador não se encontrava dentro da casa, tendo, portanto, sobrevivido ao incidente o que o possibilitou de contar essa história que se encerra.
Tudo isso está dito, é visível. Passemos a história 2, aquela que é secreta, que é tecida meio a trama da primeira.
Como já foi notado, “A queda da casa de Usher” é um conto espelhado e invertido, as oposições “real, vida” e “simbólica, morta” levam a uma leitura daquilo que se passa na mente de Roderick Usher, a iluminação de sua consciência e racionalidade X a escuridão e os desejos secretos de seu subconsciente.
Piglia afirma que “o conto clássico narra em primeiro plano a história 1 e constrói em segredo a história 2. (...) O que é supérfluo numa história é básico na outra.”, assim, é a partir dos sinais expressos em 1 que desvendamos 2.
Bem no centro d’”A queda da casa de Usher” há um poema que se articula com a fenda que desce em ziguezague no meio da parede da casa e que divide duas janelas que assemelham-se à olhos vazios (eye-like windows). A casa está refletida no lago, Roderick e Madeline são gêmeos.
É possível, agora, traçar duas análises sêmicas, uma positiva (o presente, a casa, Roderick e Madeline, a vegetação, tudo que é real, vivo e iluminado) e outra negativa (o passado, a imagem da casa no lago, a fantasmagoria, a opressão, aquilo que é fictício, a morte e as sobras e escuridão).
Roderick Usher é um personagem em desacordo com o mundo, com a vida, “he suffered much from a morbid acuteness of the senses; the most insipid food was alone endurable; he could wear only garments of certain texture; the odours of all flowers were oppressive; his eyes were tortured by even a faint light; and there were but peculiar sounds, and these from stringed instruments, which did not inspire him with horror.”, ele próprio pode configurar enquanto personagem vivo no lado positivo e com sua caracterização e feição fantasmagórica do lado negativo. A propósito, é nesse jogo ambíguo que uma coisa pode ser isso ou aquilo que Poe estrutura a história 2. Positivo e negativo misturam-se, a ficção torna-se realidade, o subconsciente é revelado ou ao menos aludido (a sugestão de uma relação incestuosa entre os irmãos, “a tenderly beloved sister, his sole companion for long years, his last and only relative on earth.”). O passado, as recordações, a culpa afligem Roderick e o levam a enterrar a irmã viva objetivando dar um fim a tudo isso. O presente retornado, na presença da irmã cadavérica, apontando a impossibilidade de enterrar o passado, ocultá-lo, abandoná-lo na escuridão subterrânea da mente. E é com o reaparecimento de Madeline que todo o passado é resgatado no presente e os pecados ocultados só podem ter um fim, “For a moment she remained trembling and reeling to and from upon the threshold, then, with a low moaning cry, fell heavily inward upon the personof her brother, and in her violent and now final death-agonies, bore him to the floor a corpse, and a victim to the terrors he had anticipated.”. As metades juntam-se. Vida e morte, Eros e Tânatus enfim deixam de duelar.



Bibliografia:
Adorno, Theodor W. – “Posição do narrador no romance contemporâneo” in: Notas de literatura I.
Arrigucci Jr., Davi – “Teoria da narrativa: Posição do narrador” in: Jornal da Psicanálise volume 31, 1998 nº 57.
Campos, Haroldo – “O texto-espelho (Poe, engenheiro de avessos)” in: A Operação do Texto.
Piglia, Ricardo – “Teses sobre o conto” in: Formas Breves.
Poe, Edgar Allan – “The fall of the house of Usher”
“The Philosophy of composition”
“Os contos de Hawthorne”
Prado, José Henrique da Silva – “O mal-estar na literatura: uma leitura comparatista” in: Revista Mal-Estar e Subjetividade, março, 2004, volume IV, nº 01. Universidade de Fortaleza.
Rodrigues, Fábio Della Paschoa – “A composição lógica e a lógica de composição de Poe”.