segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Estudos Literários: "O Espelho" - Machado de Assis

A análise que será feita privilegia os aspectos composicionais da narração, a saber: posição do narrador, retardamento e progressão, ponto de vista (angulação), caracterização e motivos narrativos, para enfim tentar resolver amigavelmente os mais árduos problemas do conto machadiano. O texto base que norteará este trabalho data da década de 50 e foi escrito por Norman Friedman, trata-se de “O Ponto de Vista na Ficção” (“The point of view in fiction”) traduzido por Fábio Fonseca de Melo.
O conto é transmitido de forma cênica, o enredo não é contando (telling), mas sim, acontece diante das ações, os eventos predominam, são mostrados (showing) diretamente com todos detalhes e sucessões temporais. É assim todo o primeiro parágrafo que apesar da imprecisão no número de personagens dentro da cena e da não definição de qual noite os fatos se desenrolam, não é possível pensar em um sumário narrativo. “Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.”. Veja a riqueza de detalhes na descrição da casa que fica entre a cidade e o céu, aludindo a famosa passagem shakesperiana “há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”. Não é forçado pensar nesta alusão a peça Hamlet já que, paradoxalmente, os quatro ou cinco cavalheiros debatem amigavelmente os mais árduos problemas do universo. Duas páginas a seguir, e uma outra citação a Shakespeare, desta vez explícita, aparece como exemplo para a teoria de que cada ser humano traz consigo duas almas.
O segundo parágrafo do conto se preocupa em desfazer a imprecisão. Afirma que são cinco os personagens, ou melhor “Rigorosamente eram quatro os que falavam: mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um outro resmungo de aprovação.”. Começa, então, a caracterizar esse quinto elemento, “Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão era a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial;”. Fica patente de que esse personagem tem entre quarenta e cinqüenta anos, é capitalista, astuto, inteligente e o mais importante, não discutia nunca. Esses dados da caracterização ganham força ao sabermos o nome do personagem, “Jacobina (assim se chamava ele)”. Jacobina remete aos Jacobinos da Revolução Francesa de 1789, grupo de homens respeitáveis da classe média de ideologia liberal burguesa e tidos como radicais que não admitiam o debate. Machado ao nomear Jacobina dá-lhe também um caráter funcional.
O silêncio de Jacobina é trocado pelo silêncio dos outros quatros. Esses escutam enquanto aquele passa a contar um caso de sua vida, dizer que não há uma só alma, há duas.
Durante a explanação surge a metáfora da laranja, que se transforma em um primeiro motivo narrativo, “Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência;”.
Então ele dá seqüência ao que se sucedeu quando tinha vinte e cinco anos (será a metade dos seus cinqüenta?). Aqui aparece o segundo motivo narrativo, o olho, o olhar, “todos os olhos estão no Jacobina, que concerta a ponta do charuto, recolhendo as memórias.”. Também percebemos a troca da posição do narrador, até aqui a história era relatada na terceira pessoa por um narrador onisciente neutro, isto é, “os estados mentais e os cenários que os evocam são narrados indiretamente, como se já tivessem ocorrido (...) A característica predominante da onisciência, todavia, é que o autor está sempre pronto a intervir entre o leitor e a estória, e mesmo quando ele estabelece uma cena, ele a escreverá como a vê, não como vêem seus personagens.” (“O ponto de vista na ficção” – Norman Friedman). A partir daqui vemos a história pelos olhos de Jacobina, nosso narrador-protagonista. Ficamos presos a sua experiência vivida, estamos limitados a seus pensamentos, sentimentos e percepções. Nossos olhos, assim como os dos quatro companheiros estão voltados à figura de Jacobina. Na verdade, talvez sempre tiveram, uma vez que “quem entrevê o que se passa por trás da máscara da terceira pessoa já foi primeira pessoa, já se olhou no espelho” (“A máscara e a fenda” – Alfredo Bosi).
O que aconteceu com Jacobina retoma a velha alegoria da sombra perdida, como anota Antonio Candido em “Esquema de Machado de Assis”, “um moço, nomeado Alferes da Guarda Nacional, vai passar uns tempos na fazenda de sua tia. Esta, orgulhosa com o fato, cria uma atmosfera de extrema valorização do posto, chamando-o e fazendo que os escravos o chamem a cada instante ‘Senhor Alferes’. De tal modo que este traço social acaba sendo uma ‘segunda alma’, indispensável para a integridade psicológica do personagem. Dali a dias a tia precisa viajar com urgência e deixa a fazenda a seu cargo. Os escravos aproveitam para fugir, ele fica na solidão mais completa e chega às bordas da dissolução espiritual, desde que não tinha mais o coro laudatório que evocava o seu posto a cada instante. A tal ponto, que olhando certo dia no espelho vê que a sua imagem aparece dissolvida, borrada e irreconhecível. Ocorre-lhe a idéia de vestir a farda e passar algum tempo todos os dias diante do espelho, o que o tranqüiliza e lhe restabelece o equilíbrio, pois a sua figura se projeta de novo claramente, devidamente revestida pelo símbolo social do uniforme.”. Esse resumo de Antonio Candido deixa nítido de que não só os quatro personagens e os leitores são vítimas do olhar como também o próprio Jacobina é prisioneiro de seu olhar e do olhar dos outros.
A laranja relaciona-se com outros motivos: a manhã, o sol e a claridade do dia, pois é apenas durante o sono que Jacobina sentia-se aliviado, o sono eliminava a alma exterior deixando a alma interior livre para sua atuação. Assim, “quando acordava, dia claro (a laranja cortada ao meio lembra o desenho do sol), esvaía-se com o sono, a consciência do meu ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra”.
No entanto, o quase monólogo de Jacobino é interrompido poucas vezes, quando esse trata de se dirigir aos companheiros com questões do típico fática, que mais do que verificar a atenção dos ouvintes, funcionam no conto como um processo de retardamento, uma certa quebra narrativa que coloca em suspense, temporariamente, a progressão do enredo, “Custa-lhes acreditar, não?
- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.
- Vá entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos; os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos.”.
Moral da história, em “O Espelho” é o público quem tem consistência, é o Senhor Alferes, Jacobina ou ainda antes Joãozinho tem a alma humana dúbia, deletéria, nas palavras de Alfredo Bosi, “é o corpo opaco do medo, da vaidade, do ciúme, da inveja; numa palavra, o enigma do desejo que recusa mostrar-se nu ao olhar do outro”.
Afinal, “quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escada”.



Bibliografia:
Arrigucci Jr., Davi – “Teoria da narrativa: Posições do narrador” in: Jornal da Psicanálise volume 31, 1998, número 57.
Assis, Machado – “O espelho” in: Machado de Assis Contos / Uma Antologia.
Bosi, Alfredo – “A máscara e a fenda” in: Machado de Assis: antologia e estudos.
Candido, Antonio – “Esquema de Machado de Assis” in: Vários Escritos.
Friedman, Norman – “O ponto de vista na ficção” in: Revista da USP número 53, março 2002.

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